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 . textos para danças (junho-outubro)

Ressoar, para “Peças de conversação”

 

“Peças de conversação” foi inicialmente criado na forma de vídeos ao longo da pandemia pelo Núcleo Cinematográfico de Dança, para depois ganhar a configuração de espetáculo. Tal informação é importante para navegar pelo caráter episódico da dança, constituída por diversas peças que ao mesmo tempo dialogam entre si e resguardam sua autonomia.

Em cena, vemos duas mulheres em situações e sugestões pós-apocalípticas, como se tentassem se manter em contato tendo um mundo em detritos ao seu redor – situação que muito dialoga com o momento histórico no qual os vídeos foram criados. Tentam reconstruir uma pequena floresta queimada, tentam suspender galhos de árvore caídos, tentam gerar vento de formas mecânicas e afeto por meio da coreografia, em uma cena dissolvida em pequenas instalações, registros em áudio e mesmo alguns fragmentos dos vídeos que deram início ao projeto, onde vemos as duas mulheres a vagar por cidades e florestas vazias.

Suas diferentes peças coreográficas circundam o tema do toque, seja pela manipulação de diferentes elementos da cena, mas principalmente pela tentativa de dar as mãos, mantendo-se em contato e apoiando-se no corpo da outra. Dessas cenas, destaca-se uma situação no centro da peça, na qual as duas se sentam sobre uma só cadeira, uma de frente para outra, e buscam diferentes composições de baços, toques e apoios, criando quase um só corpo – imagem que se fortalece pela dificuldade em ver os rostos das performers. Há nessa partitura coreográfica algo de escultórico que as torna quase estátuas vivas de um corpo coletivo, e que remete muito a formas icônicas de pietás e laccontes em mármore, na quais o corpo está sempre se retorcendo, mostrando mais de um ângulo de si.

Por vezes a proliferação de signos concomitantes dificulta a apreensão: em momentos trechos de áudios se sobrepõem a textos projetados em vídeos e ações de montagem coreográfica, em uma intencional sobreposição de elementos que demanda espectadores atentos por todo o espetáculo.

De certa forma tais áudios, principalmente os trechos de pensadoras, parece buscar explicar ou dar sentido para as imagens fortes que a peça traz, e que se sustentam por si só.

Por ter participado da criação dessa peça, ressalto como o caráter fragmentário das danças, trilhas e do próprio espaço visa aos poucos um movimento de reconstrução. Daí o acúmulo de ventiladores movendo o espaço, de peças que sobem e se revelam, e mesmo de temas coreográficos que se sobrepõem e se repetem no bloco final, onde há mais ar em tudo e se vislumbra outros campos de ressonância. Transitando também ora oníricas ora grotescas, as duas mulheres aos poucos ganham outros devires, tornando-se quase parte da natureza que buscaram reerguer: línguas verdes, corpos brilhantes, reflexos deformados começam aos poucos a tirar a humanidade dessa dupla e a mostrar que algo ressoa dos corpos que desejam se manter em contato, mesmo à distância.

Visto n’oANDAR

 

Exaurir e repetir, para “Comunidade”

 

Comunidades não são estáveis. As comunidades humanas, em seu constante jogo com a linguagem, mudam a significação das coisas a todo tempo. Aquilo que era valorizado torna-se inútil, o sentido de uma palavra pode mudar do dia para a noite, e as coisas jamais ficam do jeito que são. Em Comunidade, nova pela da cia Perversos Polimorfos, vemos como primeira cena um grupo em linha a andar para trás, olhando para si e para nós mesmos como quem se e nos desafia a algo incerto.

A peça é dividida em três blocos: a festa, o silêncio e o espanto da morte. Se na primeira o grupo de fato se coreografa como se em uma grande festa, o silêncio possui uma coreografia mais metódica e circular, onde aos poucos duplas e grupos se formam e se desformam ao som de A Sagração da Primavera, de Stravinski – obra que moveu essa pesquisa do grupo em torno do tema do sacrifício. No bloco final, todos os intérpretes se sentam de frente para a platéia e, aos poucos, constroem diversas expressões exageradas que transitam rapidamente entre emoções e sentimentos como dor, alegria, desespero e gozo. Em comum às diferentes cenas há esse mesmo grupo jovem e diverso, que faz da animalidade uma peça de roupa em animalprint e de Stravinski uma música de fundo.

Há nesse rebaixamento dos materiais e dos temas um dado que parece próprio a nosso momento, e que se revela em um momento, logo no início da peça, no qual um dos intérpretes tira sua camiseta transparente e brilhante dançando em êxtase ao redor do grupo para receber enfim uma camiseta da seleção do Brasil, objeto de disputa simbólica no Brasil: se por muitos anos a camiseta simbolizou a extrema direita do país, ícones pop como Madonna e Pabllo Vittar tem o poder de mover uma comunidade a mudar o sentido de tal objeto. Se isso muda algo em um tempo de pura superfície de tudo é difícil saber, e talvez por isso mesmo na festa da peça nunca sabemos que quando alguém grita que “vai morrer”, é a sério ou não.

É nesse sentido que o primeiro e o terceiro bloco conversam melhor entre si do que o bloco central, que por vezes parece um parêntese tanto em termos coreográficos quanto na abordagem mais tímida em relação à obra que se referem. Tanto na festa quanto nas caretas, o grupo parece mais coeso em um registro hiperbólico, exagerado a ponto de ser cômico, como quem tenta demais responder ao sentido do grupo ao qual pertence mesmo sem saber que efeitos isso produzirá. Em ambos, há algo de um gozo desenfreado que é tão constante que se pasteuriza, virando uma só imagem de si mesmo.

O transe, a viagem da droga, o excesso e a certeza quase adolescentes desenham uma comunidade que vem ao mesmo tempo em seu poder e seus limites. Ensimesmadas, de olhos fechados, em sutil competição, sem conseguir formar vínculos, essa comunidade por vezes parece ser um grupo onde cada um fala por si, usando o outro mais como plataforma de exibição e de carregamento. Há algo que não se revela, por conta do parêntese de Stravinski, entre a festa e o espanto da morte (até porque, de fato, a morte está de fora dessa montagem, e a sacrificada que dança ao centro da roda não aparece, restando apenas sua luz a pino). E isso que não se revela segue como o principal mistério da peça: como aquele corpo da festa, que morre simbolicamente de tanto dançar por ter muito medo da morte torna-se esse corpo da emoção à flor da pele, que ri afetado pelo outro ou imita o trejeito de alguém só porque faz parte da mesma comunidade? Ambos os momentos, unidos por uma lógica da repetição e da exaustão positivas, parecem apontar para o que especificamente violento nos sacrifícios de hoje, e não de outrora.

Visto no Teatro de Conteiner

 

Atritos, para “Trilhares”

 

A cia Damas em Trânsito e os Bucaneiros possui uma já longa e sólida pesquisa que alia o campo do contato-improvisação com propostas instalativas e vivenciais para espaços públicos. Em “Trilhares”, sua nova criação desenvolvida e apresentada no Centro Cultural São Paulo, novos elementos se unem ao trabalho do grupo: pessoas de idades diversas, que usualmente não figurariam em um trabalho de dança. Vemos crianças, adolescentes e idosos compartilharem diversas cenas que ocorrem ao longo de diferentes espaços do Centro Cultural.

Após um potente início com o grupo mais velho sentado ao redor de uma mesa simples no Mirante do espaço, com alguns objetos enigmáticos sobre a mesa e uma movimentação que em algum momento pode brincar com uma sessão de evocação, vemos separados em cenas os diferentes grupos: há um grupo de idade “média”, entre adolescentes e adultos, que responde de forma mais clara ao repertório de movimentação do grupo, e ao fim vemos o grupo de crianças, com uma simples partitura coreográfica entre a brincadeira e a dança.

Vestindo peças de tons fortes e coloridos entre o roxo, o azul e o laranja, os três diferentes grupos aos poucos se mesclam, virando um grande coro que realiza propostas simples por diferentes áreas, como coreografias de composição espacial com cadeiras de plástico ou desenhos espaciais carregando vasos de planta. Visto num sábado bastante cheio daquele espaço, por vezes parece que as propostas habitam o espaço de forma mais genérica do que outras, fazendo com que longos trânsitos pelo Centro Cultural sejam pouco habitados por imagens ou cenas que contribuam para a imersão proposta pela peça (o longo percurso pela biblioteca, por exemplo, já após uma hora de percurso, parece pedir por mais atenção). Por outro lado, os momentos em que o público pode parar para ver a experiência de todos os corpos em conjunto (como em uma cena onde todos realizam um jogo simples de cadeiras, ou próximo ao fim, quando criam uma área cênica em uma área externa ao fundo do espaço, mais vazia) são pontos onde o intuito do projeto se revela mais, e o tom essencialmente positivo que a cia adota em suas produções ganha mais nuances:

podemos ver uma criança aborrecida em meio a uma proposta coreográfica, algum gesto coletivo se revela impossível por uma coluna já envelhecida, e o tom geral de uma grande brincadeira que a peça possui revela que o convívio entre gerações jamais será algo homogêneo, mas se funda no atrito entre fisicalidades (e possivelmente visões de mundo) muito diversas.

De toda forma, a produção da cia é mais um sinal que a dança paulistana têm buscado se rever com a questão do etarismo que foi por tanto tempo obliterada das discussões, criando assim uma concepção alargada de técnica e presença cênica que muito contribui para nossa cena. É inclusive uma das grandes lições do espetáculo notar os diferentes modos de fazer entre quem trabalha profissionalmente com dança e quem de fato entende tudo aquilo como brincadeira. Pois é apenas na brincadeira descompromissada que reside um potencial de profanação das estruturas dadas. Na brincadeira, há espaço para desistência, inversão e subversão do que foi combinado, algo necessário para que a arte se movimente e descubra lugares novos.

Visto no Centro Cultural São Paulo

mumianijinski, para “3 contra 2: psico trópicos”

 

No mito de Osíris, Isis procura seus pedaços pelo mundo após ele ter sido desmembrado por seu irmão Set. Encontra todas suas partes, menos seu pênis, que havia sido jogado nas profundezas do mar. Para engravidar de Osíris, Isis cria então um pênis artificial, feito da acácia, engravidando assim de Hórus. Osíris, após sua reunião parcial, torna-se assim a primeira múmia da história. Em um site na internet, alguém diz que essa é uma história de amor e terror ao mesmo tempo. Assim eu também descreveria as últimas criações da Improvável Produções, que pensam a obra de arte como esfinge que lança perguntas para seu público.

Em 3 contra 2: psico trópicos, vemos em cena três homens em grande parte da obra, em uma espécie de disputa silenciosa entre o ballroom e o faroeste estadunidense. Em um corredor visto lateralmente pelo público, uma espécie de jogo de pergunta e resposta entre dois performers marca grande parte da cena. De um lado, um pianista dançarino veste apenas calças para montaria em touro com adornos pink, sentando-se sobre uma caixa onde toca percussão e piano, executando de forma repetitiva uma mesma partitura de mãos e caminhadas que muito parece os poucos frames de Nijinski como fauno, em preto e branco e baixa definição. Quase um autômato de um caubói-hieroglifo-modernista, esse performer toca e dança e monta seus instrumentos bareback: ao mesmo tempo sem cela e no pelo. Quem responde à sua dança é a figura de um performer fauno que já encontramos em outras criações da dupla, circundando o espaço com um voguing que geralmente termina com o corte de sua própria cabeça (ao menos seu gesto, com um dedo que atravessa seu pescoço). Essa luta, porém, não tem vencedores ou perdedores, e o investimento é na própria relação entre os corpos que se dá em uma guerra – mas também no sexo. Um contra o outro mas também um para o outro – ou melhor, um “no” outro, como se essa disputa interminável aos poucos fizesse uma figura entrar na outra, cada vez mais e mais “no pelo”.

A ideia de algo contra outra coisa, presente no título da obra a partir da polirritmia de 3 batidas contra 2, parece permear toda a obra, seja na já citada relação de embate amoroso entre os dois performers que dialogam sempre em desencontro, seja na inteligente formatação espacial do espaço no qual, sobre o palco, vemos a plateia de um dos maiores teatros do Sesc São Paulo “de esguelha”, se colocando contra mas também ao lado da disposição à italiana, ou mesmo na inteligente luz de Laura Salerno, que, a ponto de cair, ilumina “de contra” os corpos, banhando aos poucos os corpos dos performers com o mesmo pink que vemos na calça de montador. Tudo aqui escorre, tudo ao ponto de cair: da maquiagem às luzes ao corpo que tomba para trás em mackaella dip.

A circularidade dramatúrgica e gestual se intensifica ainda mais quando um terceiro homem entra na conversa, com o pescoço pintado de dourado como se sua cabeça não fizesse parte de seu corpo – como em outras obras, o glamour carnavalesco torna-se rapidamente uma imagem de detritos de guerra. E é seu pescoço que circula, junto de todo seu tronco, fazendo-o deslocar-se de forma cambaleante pelo espaço. Esses corpos vagueiam não apenas pelo espaço do palco, mas também pela história, recuperando gestos de temporalidades distintas de forma metodologicamente alucinada. É daí que se abre espaço para uma última figura nua (bailarino que, de certa forma, carrega Nijinski em si) que, com a ajuda de um adorno carnavalesco fálico em sua cabeça, coloca para sambar o fauno de Nijinski, nosso Ney Matogrosso e uma marcha militar, que ao seu fim se direciona não mais para nós, mas para a imensa plateia vazia ao nosso lado. Dessas figuras coreográficas emerge um masculino delirante que puxa o tapete das nossas atuais imagens pacifistas e tímidas de progresso, de integração homogênea e lisa com a natureza.

Como bem coloca Vilém Flusser em “A Fenomenologia do brasileiro”, nossa relação com a natureza é uma de ódio e descrença, que nos coloca fora da (noção de) história e nos insere ainda numa circularidade mítica da violência sem progresso. Daí que relação entre homem (aqui homem mesmo, não humano) e natureza que se apresenta nessa peça é uma que se permite apontar em dois sentidos: o do gozo erótico de uma multidão que delira no funk e no samba mas também a marcha organizada utópica-modernista do “terror e bomba”, que estão mais próximas do que desejamos.

Visto no Sesc Pinheiros

Paisagens rastejantes, Para “Horizonte+”

 

No enorme palco do Theatro Municipal, a orquestra reduzida a uma bateria dá o tempo para o Balé da Cidade de São Paulo se mover de forma imprevista, sob a direção de Beatriz Sano e Eduardo Fukushima. Sempre em duplas, o elenco é acompanhado por uma também dupla de esculturas de Tomie Ohtake que parecem reluzir em cena de tão brancas e brilhantes. Essas esculturas sem título materializam finas linhas torcidas no palco, mas se contrastam: uma está suspensa, sobre a área da dança, em constante movimento de giro sobre seu próprio eixo como um móbile que resguarda e olha pelos bailarinos. A outra, na boca de cena, repousa no chão imóvel, fora da área da dança, mas em primeiro plano, como outra guardiã daquele espaço ao fundo.

Mais do que uma cenografia, essas esculturas são a chave para se ler uma coreografia que também transita entre o corpo deitado - cujo centro permite moveres quase imperceptíveis - e o corpo em plano médio e alto - que busca o ar com as mãos e, com isso, se desloca. Também o posicionamento das peças, como se houvesse um além e um abaixo das esculturas de Ohtake é central para se ler a dança, seja em seus pontos mais potentes ou nas questões que deixa em aberto. Se o posicionamento das esculturas resguarda os bailarinos, que estão contidos pela obra, essa contenção aparece em toda a proposta, seja no curto tema coreográfico (composto por gestos e frases simples e distantes da costumeira virtuose de peças dessa escala), seja na trilha reduzida a um instrumento e sons dos bailarinos em cena, ou mesmo na horizontalidade assumida por quase toda a obra. Tal distância contida e contínua, seja em termos espaciais ou dramatúrgicos, também faz da peça bastante exigente para um público cuja relação coma obra tende a ser da ordem do espetáculo. Sendo uma coreografia de casulo e contenção, de detalhe e de proximidade, a escala quase dispersiva do Theatro por vezes se impõe sobre a coreografia, (dis)traindo-a.

De todo modo, é uma coreografia para se ler em contexto, seja em relação à atual direção artística do Balé, que investe assertivamente no diálogo com um campo de pesquisa em dança, seja em relação ao próprio programa da noite (pois vale notar que a coreografia seguinte é quase antagônica ao minimalismo rasteiro da dupla, sendo uma tentativa de superar a gravidade). É importante também frisar que tal contenção demonstra ao mesmo tempo um aprofundamento de interesses da dupla de coreógrafos acerca de forças invisíveis que vem de fora de moldam o corpo: seja no interesse de Beatriz Sano pelo campo ficcional da cena ou na entrega quase colapsada ao chão que vemos recorrentemente em Eduardo Fukushima.

Em Horizonte+ tais focos reaparecem em uma cena talvez próxima a experiencia de ver uma paisagem no horizonte - experiencia essa facilitada pelas padronagens abstratas do figurino e pelo acertado espaço cênico que, de tão minimalista, revela que aquele Theatro é justamente o oposto de qualquer minimalismo, sendo antes uma maquinaria de efeitos de cena e sociedade que se revela ao fim da peça, quando vemos o fundo do palco revelado e a vara de luz baixa a devolver a luz para nós. Pois talvez seja essa a principal questão da obra, presente em diversas teorias da paisagem: o horizonte não existe na natureza que vemos, mas sim é construído ativamente a partir da posição de quem vê. Nesse sentido, se todo horizonte depende da disposição de um outro (seja da dupla que dança, seja do público), cabe pensar como e quanto tempo leva para, junto de quem olha, construir esse olhar.

Visto no Theatro Municipal

Foto de Rafael Salvador

Torcer o bipedismo, Para “Bípede sem pelo”

 

Em homem corre em um pequeno espaço. Como é próprio do ato de correr, sua direção é clara: corre para frente, com a ajuda de seus dois pés. O bipedismo, vale lembrar, aumenta o campo visual, com o rosto que se libera para o horizonte, além de possibilitar uma maior expansão dos pulmões. Esses fatores são essenciais para esse longo começo, que comporta toda a entrada do público. Correndo sempre para frente, mas em círculos, Alexandre Américo visivelmente se cansa antes mesmo de começar sua dança, mostrando uma corrida com toda sua intensidade, mas que não vai a lugar nenhum.

A corrida, símbolo de competitividade e sobrevivência dos mais aptos, logo dá lugar a outro registro de cena, no qual o corpo não se desloca mais para frente, mas sim para baixo, apoiando-se em quatro apoios e entregando sua cabeça a diferentes materiais, como tecidos, estopas e sacos. Esse corpo que se entrega para outros corpos não humanos será de fato o mote coreográfico de Bípede sem pelo, de Alexandre Américo. Lentamente acumulando tais materiais sobre sua cabeça e fazendo-a aos poucos desaparecer, o performer perde também com tal ação seu olhar, que guiava sua corrida ao redor e sobre esses mesmos materiais (chegando mesmo a saltar sobre alguns deles no começo da obra).

Tal inversão é central para o desenvolvimento da dança. O corpo que outrora corria sobre os silenciosos materiais agora entrega-se a eles, que se acumulam e se desorientam sobre sua cabeça. A cuidadosa e gradual colocação dos materiais, na qual eles são torcidos pelo artista e enrolados sobre sua cabeça, merece especial atenção. Tal qual obras recentes como Encantado, de Lia Rodrigues, e Morda forte, corra rápido de Elisabeth Finger, a torção do material surge como gesto recorrente (sendo inclusive citado em outros textos meus). Torcer é a possibilidade de se enxergar algo por outro ponto de vista, mas não de forma dual. A torção, de certa forma, mantém o giro em movimento, permite que algo seja visto como incapturável, moldável, mole. E é essa torção, que inicialmente é apenas dos tecidos, que se desdobra no plano alto através de uma variação de giros.

Após colocar todos os materiais sobre sua cabeça (incluindo lantejoulas e pompom de carnaval), essa figura que amalgama um Brasil tradicional, seu clichê e sua crítica inicia um giro crescente que é desafiado pelos próprios materiais, que se soltam aos poucos e chegam a se torcer no próprio corpo que gira. Assim, o corpo que torce o objeto é também torcido por eles, em um jogo de duplo desafio.

Dessa experiência, o corpo que emerge é outro: sem o short do corpo corredor, o corpo agora nu e sobre quatro apoios retoma sua bipedia para girar em seu próprio eixo, devolvendo-nos um corpo do prazer e da festa, cujo vetor é espiralado, torcendo-se sobre si mesmo.

A simplicidade da cena lança luz para as também simples soluções de diversos ritos religiosos e festas populares brasileiras nas quais o que se vê é um corpo passar por uma transformação diante dos nossos olhos. Esse dado cultural, da dimensão experiencial, foi também central para nossa arte contemporânea (difícil não vermos também um Parangolé de Oiticica ou a proposição “Cabeça coletiva, de Lygia Clark, na peça) e merece ser pensado com afinco pois, como formulou Eleonora Fabião, não é tanto a efemeridade que marca nosso entendimento de performance, mas sim a precariedade. Sem elogios fáceis a um contexto precário, a precariedade ‘feliz” teria o poder de “denotar a incompletude de toda aparição como sua condição constitutiva”.

Visto no Sesc Avenida Paulista

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